Luciano vira a mesa

Luciano Salles diz que sempre desenhou, desde criança. Mas ele só conseguiu publicar sua primeira história em quadrinhos há três anos. Com 40 de idade, o paulista da pequena Taquaritinga correu atrás do tempo perdido e já lançou, além de “Luzcia, a dona do boteco”, outras duas HQs: “O quarto vivente” – uma louca ficção científica com policiais nus e adolescentes praticando auto-inseminação em busca de um filho perfeito – e a recém-publicada “L´amour: 12 oz”.

Primeiro lançamento da nova editora Mino, “O amor: 12 onças”, em tradução livre, é, como o próprio título de Luciano Salles entrega, uma história de amor. Ou melhor: duas. Numa delas, que acontece em ordem cronológica, dois velhos boxeadores mantém uma terna e melancólica relação. Na outra, sem ordem e desconcertante, uma jovem conhece um corredor que tem a capacidade de dar saltos no tempo.

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Página da HQ “L´amour: 12 oz”

“L´amour: 12 oz” não é fácil e pede muitas releituras. Ou, como diz o jornalista especializado em quadrinhos, Sidney Gusman, no prefácio do álbum, “Não espere em suas histórias, uma estrutura clássica, com começo, meio e fim ou narrativa linear. O autor sempre constrói seus roteiros para ‘desafiar’ o leitor. Luciano Salles vai obrigar você a voltar as páginas algumas vezes para ver se perdeu alguma informação aqui ou ali”.

“Este é o meu jeito de escrever roteiros de quadrinhos”, explica Salles. “É natural, nada intencional. Eu só quero fazer com que o leitor participe. Fico feliz quando alguém diz que gostou tanto que leu duas, três vezes”.

Com elogios de outros críticos do gênero como Paulo Ramos, do “Blog dos Quadrinhos”, (“Luciano Salles constrói narrativas que exigem uma postura nada passiva do leitor”) e Daniel Lopes, do “Pipoca e Nanquim”, (“Nada do que ele produz é normal, ordinário”), Salles surge como uma promessa da nova safra de autores de quadrinhos brasileiros.

lamourcapaFormado em engenharia civil, com especialização em segurança do trabalho, ele se tornaria um funcionário modelo, na verdade, como bancário, revela o próprio. Mas, depois de 12 anos numa agência, em que chegaria ao cargo máximo de gerente, Salles diz que foi diagnosticado com síndrome do pânico. E acabou abandonando a profissão para cuidar da saúde e repensar a vida.

O autor, então, passou a dedicar mais tempo à produtora cultural Memento 832, que havia criado anos antes, com a mulher, a arquiteta e bailarina Lilian Penteado; e a cunhada, a fotógrafa Leila Penteado. Situada em Araraquara, a produtora trabalha com instalações, performances, oficinas culturais e segundo Salles, traz em seu nome um número de três dígitos que vive atrás dele. Curiosamente, a soma dos três dá 13, mas ele diz que não é supersticioso:

“Se tiver uma escada na calçada, eu passo embaixo, sem problema, mas o número me persegue”, conta o autor, antes de dizer que o 2 representa as duas dimensões de seus desenhos e o 3, os projetos tridimensionais da mulher, com dança ou arquitetura, ambos para o SESI e o SESC, principalmente. E o 8… “Pensei na curvinha de Möbius”, diz Salles, em referência à fita circular de superfície única, desenvolvida pelo matemático alemão August Ferdinand Möbius.

Salles, que ainda escreve uma coluna sobre quadrinhos no site Stout Club, tem muitas referências, mas, ironicamente, diz que a HQ não é a mais forte delas, e sim o cinema. De diretores como David Lynch, Lars von Trier e Gaspar Noé: “É a mídia que eu mais consumo. Mais do que os quadrinhos”.

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O quadrinista Luciano Salles

Ainda com tão poucos títulos em HQ publicados, um deles, “Luzcia, a dona do boteco”, já virou curta-metragem e conta a história de uma senhora, com artrite, que levanta uma grana vendendo pontas de dedos de seus clientes para o mercado chinês de guloseimas. Exibido apenas uma vez ao público, no dia 18 de dezembro, em sessão no Sesc de Araraquara, o filme foi dirigido pelo diretor Paulo Delfini.

“Depois da première, estou focado em enviar o filme para os festivais mais importantes, tanto no Brasil como no Exterior”, explica Delfini por email, ” E como muitos festivais pedem ineditismo para os filmes em competição, isto  limita um pouco as exibições do curta, pelo menos neste primeiro ano. Depois disponibilizaremos na internet”.

Salles revela que a ideia do curta-metragem foi uma proposta do próprio cineasta, um amigo de longa data: “Eu disse a ele que a HQ era um pequena revista de doze páginas e acreditava que ficaria legal se tudo aquilo tomasse ‘vida’. E mesmo dizendo que não me envolveria na produção, acabei me metendo em tudo do filme. Até uma pontinha, como um bêbado, eu fiz”, diz o desenhista, rindo.

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Cena do curta-metragem “Luzcia, a dona do boteco”

“Acho o trabalho do Luciano muito peculiar. E suas histórias muito bacanas”, conta o amigo de longa data. “Admiro a vida dele, e como ele se transformou após tudo o que passou trabalhando em grandes instituições.Luciano virou a mesa, como artista e empreendedor”.

A próxima HQ de Salles, com lançamento previsto para novembro, no Festival Internacional de Quadrinhos, em Belo Horizonte, vai se chamar “Limiar: Dark Metter”, e, segundo ele, é uma história de vingança de dois amigos, com a ajuda de outro, já morto.

“O curioso é que as histórias dos três álbuns se completam, mesmo que não sejam uma trilogia”, explicaSalles. “E nem sei se este é o jeito certo de se fazer quadrinhos. Mas é assim que eu faço”.

Uma versão reduzida deste texto saiu na Folha de S. Paulo.

Autor: telionavega

Designer editorial e jornalista de entretenimento apaixonado por cultura pop, principalmente quadrinhos.

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